Princípio da proteção do existente: uma mudança de paradigma necessária para a reabilitação urbana
O Plan Voisin, elaborado por Le Coubusier para centro de Paris, é um conhecido exemplo do potencial destrutivo do urbanismo modernista, quando aplicado a uma cidade erguida segundo princípios urbanísticos tradicionais. Basicamente, o plano previa a completa demolição dos edifícios existentes, para a construção de torres afastadas entre si e vias largas para a circulação de automóveis.
Hoje em dia, não se discute a demolição e reconstrução de cidades nessa escala, mas ainda estamos tentando implementar um urbanismo modernista por meio do zoneamento. Não seria possível construir atualmente os prédios existentes nos centros históricos das principais cidades brasileiras, com coeficientes de aproveitamento altos e sem recuos de frontais ou laterais. Apesar disso, são essas áreas que muitas vezes são valorizadas como agradáveis ao pedestre e densas, constituindo um exemplo do urbanismo que agora se pretende fomentar.
Os edifícios antigos que se tornam incompatíveis com a legislação atual são considerados desconformes. Não precisam ser demolidos, pois estão protegidos pelo direito de propriedade. Os novos padrões são exigidos em caso da construção de novos edifícios, mas não retroagem para atingir os antigos. Isso vale não apenas para as normas de parcelamento, uso e ocupação do solo, mas também para as edilícias, de acessibilidade e de prevenção de incêndio. As edificações existentes não precisam ser adaptadas cada vez que a legislação é alterada.
Os padrões em vigor são aplicáveis, no entanto, caso se pretenda alterar o prédio existente, mediante sua reconstrução, reforma ou ampliação. Se um edifício que foi construído sem recuos e com coeficiente de aproveitamento superior ao atual for demolido, somente poderá ser construída em seu lugar uma edificação com coeficiente de aproveitamento reduzido e com recuos, ainda que esta destoe completamente de seu entorno. Em muitos casos, poderá ser cobrada, ainda, uma outorga onerosa de direito de construir para tudo que exceder o coeficiente de aproveitamento básico (em geral, igual a 1).
Em caso de reforma, não se exige a aplicação das normas urbanísticas, como recuos e coeficientes de aproveitamento, mas das normas edilícias, de acessibilidade e prevenção de incêndios. Ocorre que essas normas muitas vezes estabelecem padrões de atendimento impossíveis ou excessivamente onerosos para a adaptação de edificações existentes, que podem envolver elementos como a iluminação de cômodos, o dimensionamento de portas, banheiros e elevadores e a construção de escadas. Para reformar uma edificação, evitando sua deterioração, o proprietário terá que observar todas essas novas exigências. No caso de edificações tombadas, com frequência ocorre, ainda, uma contradição entre essas normas e a necessidade de preservar o patrimônio cultural.
Mais recentemente, tem havido alguma flexibilização nessa matéria, com alguns estados e municípios admitindo a substituição do cumprimento estrito das normas pela apresentação de soluções alternativas, mediante prova de inviabilidade técnica ou onerosidade excessiva. Embora seja um avanço, essa solução ainda é muito burocrática e depende de avaliações discricionárias de órgãos públicos, que tendem a ser muito conservadores nesse tipo de análise.
Outra forma de flexibilização é a classificação das áreas construídas adicionais necessárias para o atendimento das normas de acessibilidade e prevenção de incêndios como não computáveis. Isso foi adotado, por exemplo, nos Programas Reviver Centro, no Rio de Janeiro, e Requalifica Centro, em São Paulo.
Apesar desses avanços, o que resulta desse quadro é uma grande quantidade de edificações mal conservadas e que tendem a se deteriorar devido à inviabilidade técnica ou ao alto custo de sua reforma ou reconstrução. É preciso mudar o paradigma e adotar uma visão completamente distinta, que permita quaisquer intervenções nas edificações existentes que melhorem sua situação, independente dos parâmetros exigíveis de novas edificações.
É o que estabelece o princípio da proteção do existente, incorporado ao seu Regime Jurídico da Reabilitação Urbana (RJRU) de Portugal. Essa abordagem inovadora não exige de obras de reconstrução ou alteração a conformidade absoluta com as normas vigentes, mas que as intervenções não agravem as desconformidades existentes ou melhorem as condições de segurança e salubridade da edificação. No caso de operações de reabilitação urbana – conjuntos articulados de intervenções visando, de forma integrada, a reabilitação de uma determinada área – admite-se, inclusive, o agravamento de algumas desconformidades em obras de reconstrução e ampliação, desde que se prove que o cumprimento das normas geraria um sacrifício desproporcional e que se produza uma melhoria das condições de desempenho e segurança da edificação.
A adoção do princípio da proteção do existente no Brasil pode ser um divisor de águas na maneira como abordamos a reabilitação urbana. Sua implementação não apenas aliviaria o ônus econômico que recai sobre proprietários e investidores, mas também incentivaria a revitalização de áreas históricas, beneficiando a sociedade como um todo. O sucesso da reabilitação urbana em Portugal é um testemunho do potencial transformador dessa política.
Todos os entes da Federação têm competência para incorporar o princípio da proteção do existente à sua legislação. Em lugar de estabelecer regras rígidas, acompanhadas de exceções e procedimentos especiais para edificações existentes, estas devem ser simplesmente excluídas de seu campo de incidência. A adaptação da edificação às novas normas pode ser incentivada, mas estas não podem se constituir como obstáculo às melhorias incrementais que permitam seu pleno aproveitamento.
Texto de autoria de Victor Carvalho Pinto, originalmente publicado na coluna do Laboratório Arq.Futuro de Cidades - parceria entre o Insper e o Arq.Futuro - no Caos Planejado em 26 de março de 2024. Confira o texto original aqui.
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