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Um olhar técnico sobre a revisão do Plano Diretor de São Paulo

Pesquisadores do Laboratório Arq.Futuro de Cidades do Insper apresentaram uma série de sugestões visando ao aprimoramento das discussões sobre o Plano Diretor de São Paulo, cuja nova versão foi aprovada no final de junho.

 

Texto de autoria de Leandro Steiw, publicado em 13 de julho de 2023 para o Insper. Confira o texto original aqui.

 

Contribuir para qualificar, com base em dados e evidências, o debate em torno do principal instrumento de planejamento da cidade. Essa foi a ideia que norteou a participação — por meio de estudos e reuniões com representantes dos principais setores envolvidos — do Laboratório Arq.Futuro nas discussões sobre a revisão do Plano Diretor Estratégico (PDE) de São Paulo, aprovada pela Câmara Municipal no dia 26 de junho.


Antes da votação definitiva, o Laboratório publicou uma nota técnica sobre as alterações propostas no primeiro substitutivo — o qual trazia  mudanças no texto enviado em março pela Prefeitura —, apresentado pelo relator Rodrigo Goulart (PSD), cuja aprovação ocorrera em 31 de maio.


O trabalho faz uma estimativa dos crescimentos das áreas com maior potencial de verticalização nos bairros a partir da expansão dos Eixos de Estruturação da Transformação Urbana, concentrados no entorno do transporte público e alterados em relação ao PDE de 2014 na versão aprovada. Os eixos são a área com maior potencial de adensamento residencial e construtivo.


Na nota, são destacadas cinco alterações no PDE que impactam a dinâmica dos eixos: a alteração dos limites para vagas de garagem incentivadas; a possibilidade de aumento da cota máxima de terreno por unidade habitacional de 20 para 30 metros quadrados ou superior, mediante pagamento adicional de outorga onerosa; a possibilidade de aumento do coeficiente de aproveitamento máximo nos chamados miolos de bairro; a ativação dos eixos no Arco Tietê da Macroárea de Estruturação Metropolitana até a aprovação do respectivo projeto de intervenção urbana; e a possibilidade de ampliação da área de influência dos eixos, na qual o potencial construtivo pode ser aumentado.


Sobre a mudança nas garagens, o Laboratório já publicou dois estudos, que podem ser lidos nesta nota técnica e nesta. Eles mostram o retrocesso na liberação de vagas para imóveis residenciais de menor metragem, na contramão das intenções de limitar a circulação de carros nos eixos. Segundo o professor Adriano Borges Costa, pesquisador-líder da pesquisa do Laboratório, a primeira e a segunda alteração se relacionam, porque gerariam menos unidades habitacionais próximas ao transporte público.


A terceira mudança tende a igualar a capacidade construtiva dos miolos de bairro, desmontando a função que eles exercem com os eixos. “Se você iguala a capacidade construtiva nos miolos e nos eixos, os eixos deixam de existir e é importante que haja uma diferença significativa entre os miolos e os eixos para orientar a verticalização para o transporte público”, explica o professor Costa, coordenador do Núcleo de Economia Urbana e Ciência de Dados e coordenador-adjunto do Núcleo de Mobilidade. “Diminuir a diferença entre o coeficiente de aproveitamento dos miolos e dos eixos reduz a capacidade de atrair novas residências para áreas mais acessíveis.”


O quarto e o quinto ponto também são preocupantes porque não haviam sido estudados adequadamente e são uma novidade incluída no primeiro substitutivo da Câmara. A nota técnica do Laboratório trata de todas essas cinco mudanças, mas traz dados e projeções para a expansão das áreas de eixo.


Para Costa, criar mais áreas de adensamento próximas ao transporte público não é um retrocesso. “A dificuldade é definir até quanto consideramos uma área como próxima ao transporte público”, destaca ele. “Também devemos considerar que, ao ampliar o potencial construtivo ou a área de verticalização em eixos já consolidadas, onde há demanda, podemos desincentivar áreas novas de adensamento. Então, se o eixo de Pinheiros está se esgotando em termos de terrenos disponíveis para incorporação, ao ampliar a área de influência deste eixo, dificultamos o deslocamento da produção imobiliária para áreas como Mooca, Tatuapé e Santana, que também são próximas ao transporte público, mas atraem menos interesse imobiliário.”


A análise do Laboratório mostra que, no Plano Diretor vigente, o critério para definição dos eixos são as quadras tocadas pelo raio de 400 metros da estação do metrô ou de trem, que, no entanto, não ultrapassam os 600 metros de distância dessa estação. O substitutivo aprovado pelos vereadores aumentou a distância máxima para 700 metros. Em relação ao transporte sobre pneus nos corredores de ônibus de média e alta capacidade, o critério era de 150 metros internos e 300 metros externos, ampliados agora para 400 metros.

 

Adensamento com qualidade


Outro alerta do estudo do Laboratório Arq.Futuro de Cidades do Insper refere-se à mudança no Arco Tietê, que abrange basicamente toda a borda da região da Marginal Tietê, incluindo o entorno da Linha Vermelha do metrô. Os eixos não são ativados naquela área porque faltam projetos de intervenção urbana específicos. “Para receber um adensamento maior, a área precisaria ser qualificada, porque tem uma estrutura viária ruim e lotes muito grandes”, afirma Costa.


A nota técnica aponta um incremento de 160% na área de influência dos eixos depois das alterações no PDE. Os atuais 51,5 quilômetros quadrados de eixo subiriam para 81,6 quilômetros quadrados, passando de 5,6% para 14,5% da área urbana do município. “É importante dizer que esse aumento, pela vista das áreas de eixo, não é automático”, comenta Costa. “Estamos falando que pode crescer até 160% porque o Plano Diretor está permitindo que, na Lei de Zoneamento ou a qualquer outro momento, ativem-se esses eixos nesses dados e critérios. Mostramos, então, que esse crescimento é muito heterogêneo por distritos, tornando-se grande na Vila Mariana e na Consolação, por exemplo, porém muito maior na Lapa, na Freguesia do Ó, em São Lucas e no Sapopemba.”

O crescimento heterogêneo também é relevante nas imediações das estações Água Branca, Autódromo, Jardim Pedra Branca, Santana e Piqueri, por exemplo, correspondendo a mais de dez vezes as áreas atuais consideradas como eixos. A Vila Madalena e a Corinthians-Itaquera crescerão cerca de 300%. Ainda assim, essa ativação de eixos está bastante próxima do transporte público quando se considera o deslocamento a pé. A nota do Arq.Futuro compara o aumento em relação a diversas estações por meio de isócronas, que indicam a área que se consegue atingir, dado um modo de deslocamento ao longo de uma janela de tempo.


Hoje, 92% de todas as áreas de eixo atual podem ser acessadas em 15 minutos de caminhada, a partir de uma estação ou corredor de ônibus. Apenas 8% exigem mais de 15 minutos a pé. Se o raio dos eixos fosse mudado para 1.000 metros, como pretendia o primeiro substitutivo aprovado pela Câmara, 44% das dos trajetos até as estações seriam de até 15 minutos e 56% em mais de 15 minutos. A versão final aprovada, com raio de 700 metros, acabou ficando dentro da simulação de 800 metros feita pelo Laboratório, que indica que 89% das novas quadras estarão até 15 minutos de caminhada da estação.

 

Estratégico e qualitativo


Antes da votação do substitutivo, o Arq.Futuro apresentou uma série de sugestões de aprimoramento do texto ao relator Rodrigo Goulart. Os objetivos eram corrigir inconsistências ou promover aperfeiçoamentos pontuais, aumentar a segurança jurídica, eliminar regulações ineficazes ou excessivamente burocráticas, fortalecer o caráter estratégico do PDE e regulatório da Lei de Parcelamento, Uso e Ocupação do Solo (LPUOS) e, por fim, harmonizar a implantação de infraestruturas com o planejamento urbano.


O advogado Victor Carvalho Pinto, coordenador do Núcleo Cidade e Regulação do Laboratório, ressalta que o PDE forma um pacote com a LPUOS, chamada comumente de Lei de Zoneamento. “O Plano Diretor deveria ser algo mais estratégico e qualitativo”, afirma. “Ele não deveria necessariamente dizer a quantos metros da estação de metrô ficará a área de influência do eixo. O correto é que a Lei de Zoneamento faça essa definição precisa de distância.”


A sugestão do Arq.Futuro foi reforçar o modelo que São Paulo adotou em 2014: um plano diretor exclusivamente estratégico, conceitual e qualitativo que deixa as minúcias quantitativas para o restante da legislação. “Por exemplo, há artigos do Plano Diretor que proíbem a Lei de Zoneamento de aumentar a densidade de áreas estritamente residenciais”, observa o jurista. “Achamos que não tem que proibir, mas que a Lei de Zoneamento deve analisar se é o caso ou não de aumentar e respeitar as diretrizes do Plano Diretor. Senão, o Plano Diretor traz para si um assunto que não é dele.”


Seguindo esse mesmo raciocínio, existem outros planos urbanísticos específicos para determinadas áreas, como as Operações Urbanas Consorciadas e as Áreas de Intervenção Urbana. São perímetros para os quais o próprio plano diretor define um planejamento ainda mais detalhado que a lei de zoneamento.


O Laboratório também sugeriu fortalecer a vinculação do transporte coletivo ao Plano Diretor, que deve valer tanto para o setor público como para o privado. O substitutivo definia as linhas projetadas de metrô, que se tornarão eixos à medida em que forem implantadas, permitindo, assim, uma ampliação do potencial construtivo. Admitia, entretanto, que o metrô deixasse de seguir esse planejamento, na prática desvinculando os investimentos públicos do planejamento urbano. A sugestão do Laboratório foi que eventuais alterações das linhas previstas sejam aprovadas como emendas ao Plano Diretor, a fim de que os impactos urbanísticos venham a ser avaliados.


Outra sugestão refere-se à desapropriação por hasta pública, na qual um imóvel é adquirido diretamente por um agente privado, que fica responsável pela execução do projeto urbanístico caracterizador da utilidade pública. São aquelas edificações malconservadas ou abandonadas que prejudicam o desenvolvimento de certas áreas da cidade. Na proposta da prefeitura de São Paulo, esses imóveis estavam amarrados ao instrumento do Parcelamento, Edificação e Utilização Compulsórios (PEUC), que busca o cumprimento da função social da propriedade.


Carvalho Pinto entende que a vinculação ao PEUC torna lento o processo de recuperação desses prédios. Melhor seria deixar a desapropriação livre para qualquer situação que a prefeitura considere mais adequada. Isso permitiria que um imóvel abandonado no Centro, por exemplo, pudesse ser arrematado rapidamente por alguém com capital disponível para o retrofit. “Basicamente, apoiamos a proposta da desapropriação e também sugerimos que ela possa abranger, para certas situações, a desapropriação de vários imóveis em mau estado, quando não faz sentido reformar só um, pois é necessário intervir em todos ao mesmo tempo”, justifica ele.


A medida valeria para situações que não são obrigatoriamente de descumprimento da função social da propriedade. “Existem áreas que são industriais na origem e que, hoje em dia, não têm a mesma vocação e que precisam ser reformuladas”, diz Carvalho Pinto. “O resultado da intervenção é melhor se alguém desapropriar e adquirir vários imóveis degradados um ao lado do outro, para que todos recebam um tratamento unitário.”


A revisão do Plano Diretor também incluiu regulações  que podem  mais atrapalhar do que ajudar. A fiscalização das unidades de habitação de interesse social (HIS) é um exemplo. “Há incentivo para a produção de HIS, principalmente nas áreas de influência dos eixos. Todavia, o substitutivo aprovado incluía um sistema de fiscalização sobre a renda da família que ocupa esses imóveis, excessivamente burocrático”, diz Carvalho Pinto. Segundo o documento produzido pelo Laboratório, esse tipo de regulação induz ao emprego de expedientes informais, como contratos de gaveta. Na forma proposta, a prefeitura teria que controlar a renda dos moradores ao longo de décadas, ante condições econômicas e sociais completamente distintas das atuais. Esse dispositivo acabou sendo vetado pelo Prefeito.


Ainda no âmbito da regulação, o Laboratório sugeriu uma alternativa à cobrança de outorga onerosa na reforma e retrofit de edificações. “Atualmente, a realidade que vale em geral para a cidade é que todo terreno tem dois coeficientes: o básico, que define a área que o proprietário pode construir sem pagar mais nada para ninguém, e o máximo, que permite aumentar a área construída mediante o pagamento de uma contrapartida”, explica Carvalho Pinto. “A contrapartida financeira deveria ser cobrada apenas quando houver aumento da área construída e limitar-se à diferença entre a área original e o coeficiente de aproveitamento máximo.”


Por fim, o Laboratório recomendou a eliminação de qualquer subsídio ou estímulo à construção de vagas de garagem nas áreas de influência dos eixos, como o que acabou por ser incorporado ao plano aprovado, ao classificar como computável a área de garagem. “O incorporador deve ter a opção de oferecer vagas de garagem, mas isso significa aceitar menos área de apartamento”, complementa Carvalho Pinto. A ideia não é proibir o incorporador de projetar essas vagas e sim computar o espaço tomado pelos carros (circulação, manobra e estacionamento) como área construída, na direção do fortalecimento do transporte coletivo.

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